Eventos agudos em saúde mental

Agressão e Autoagressão

Créditos

Introdução

O impacto da agressão e da violência sobre a saúde é amplamente reconhecido pela literatura especializada. Com base nessa realidade, em 2001, o Ministério da Saúde, por meio da portaria GM/MS n. 737, publicou a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências.

Nesse documento, a saúde é considerada em seu sentido ampliado e se relaciona às questões de “[...] estilos de vida e ao conjunto de condicionantes sociais, históricos e ambientais nos quais a sociedade brasileira vive, trabalha, relaciona-se e projeta seu futuro.” (BRASIL, 2001, p. 3).

Neste contexto, a violência é considerada como um problema de saúde pública relacionado com a construção da cidadania e da qualidade de vida da população e que pode ser abordado pelos serviços de saúde por meio de suas estratégias de prevenção de doenças e agravos, promoção de saúde, assistência, recuperação e reabilitação.

O documento destaca especialmente as implicações da violência para a saúde da mulher, do idoso, da criança e do adolescente, os agravos decorrentes de acidentes de trânsito e o suicídio.

A integralidade de que falamos aqui é, especificamente, aquela que se opõe à redução da pessoa ao organismo e à separação desta pessoa de seu contexto de vida. Trata-se, portanto, de considerar as agressões para além de sua expressão física em feridas e agravos e abordá-la como um produto cultural contextualizado.

Em geral, consideramos como agressivos aqueles comportamentos que se diferem de uma norma social. Esta norma regula aquilo que, em determinado local e tempo, entendemos como adequado ou inadequado, saudável ou prejudicial, bom ou mau, ético ou não ético.

Assim, ela estabelece explícita e implicitamente como devemos viver e nos relacionar. É em relação a essa norma que podemos dizer que ofender verbalmente, machucar ou ferir o corpo de alguém é inaceitável e deve ser punido.

Ações Preventivas

A prevenção no campo das violências exige ações interssetoriais na medida em que este fenômeno acompanha a existência humana.

O levantamento destes dados contribui para a construção de estratégias preventivas, nas quais se planeja, executa e monitora as ações de saúde. Dessa forma, a intervenção varia de acordo com as demandas de cada localidade. Entre os diversos serviços de saúde, é na Atenção Básica que a prevenção tem seu maior foco, uma vez que as Unidades de Saúde estão inseridas dentro das comunidades e, por isso, têm a possibilidade de identificar com maior facilidade quais são as principais ocorrências.

Conceito

Antes de tratarmos dos procedimentos adequados e necessários para casos de agressão e de autoagressão, é importante que abordemos o conceito de alguns termos relacionados a esse tema, como agressividade, autoagressão e violência.

Com relação à autoagressão ‒ para que possamos conceituá-la ‒, é necessário explicar que quando o bebê nasce ele não se diferencia da mãe e do mundo exterior. Para ele, todos os elementos do meio ‒ e inclusive ele ‒ são apenas um.

Sendo assim, muitas vezes o bebê pode ser agredido pelo meio, mas ter a percepção de que está se autoagredindo. Um exemplo disso é quando a mãe sente dor na hora de amamentar e recua o seio.

Neste caso, o bebê, com sua voracidade e faminto, aferra-se ao seio para segurá-lo. Portanto, sua percepção é a de uma luta contra si mesmo, já que para ele tudo é identificado como inerente a si. Essa situação pode ser identificada como um alto grau de violência e, como consequência, o bebê sentirá angústia.

A partir disso, o bebê poderá manifestar um dos seguintes comportamentos: esconder seus impulsos, pois o ambiente não tolera a agressão entendida como espontaneidade e vivacidade; inibir seus impulsos e desenvolver autocontrole; dissociar o impulso; ou, ainda, desenvolver tendência antissocial.

Portanto, seja em qual fase da vida estiver, a pessoa poderá se autoagredir. Por exemplo, uma criança que sofre bullying no colégio e não consegue reparar essa agressividade no meio, pode se tornar seu próprio objeto de agressão e se autoagredir, se mutilar ou se suicidar (DIAS, 2000).

Classificação

1. Autoagressão e suicídio

O suicídio tem sido apontado internacionalmente como uma das principais causas de morte entre a população de 15 a 35 anos. Segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde, no ano 2000, cerca de um milhão de pessoas morreram por suicídio, e o número daqueles que tentaram suicídio, neste mesmo ano, pode ser estimado em cerca de 10 a 20 milhões (BRASIL, 2006).

No Brasil, entre os anos de 1994 e 2004 as taxas de suicídio variaram de 3,9 a 4,5 para cada 100 mil pessoas (BRASIL, 2006). As regiões sul e centro-oeste apresentam as taxas mais elevadas, respectivamente 8,16 e 6,25, segundo dados de 2006. Entende-se que, por ser o suicídio um tema considerado tabu, é possível que o número de mortes seja ainda maior devido à subnotificação, o que ressalta a dimensão do problema.

Sabe-se que pessoas com esquizofrenia, transtorno esquizoafetivo e transtorno afetivo bipolar apresentam maior risco para o suicídio. Além disso, ser homem, de idade entre 15 e 35 anos ou acima de 75, estar desempregado, ser aposentado, solteiro ou separado são as características sociodemográficas mais frequentes nos casos de suicídio.

Dentre as características psicológicas, destacam-se o falecimento recente de pessoas próximas, personalidade impulsiva e histórico de relação insatisfatória com as figuras parentais. Finalmente, considera-se que situações de vida atipicamente estressoras e a experiência de condições clínicas incapacitantes (tais como dor crônica, lesões desfigurantes, trauma medular, neoplasias malignas e aids) podem estar presentes em casos de suicídio.

Contudo, os aspectos mais importantes a serem observados como sinalizadores desse risco são o histórico de outras tentativas e a presença de transtornos mentais. É fundamental ao profissional de saúde que, na identificação dessas condições psíquicas, o usuário receba manejo como transtornos de humor.

2. Violência contra a mulher

Como dito na introdução desta unidade, os agravos à saúde decorrentes de agressões devem ser compreendidos dentro do contexto cultural que delimita as especificidades para a atuação dos profissionais de saúde. Neste sentido, o Governo Federal publicou, em 2008, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres que afirma que:

[...] a violência contra as mulheres não pode ser entendida sem se considerar a dimensão de gênero, ou seja, a construção social, política e cultural da(s) masculinidade(s) e da(s) feminilidade(s), assim como as relações entre homens e mulheres. A violência contra a mulher dá-se no nível relacional e societal, requerendo mudanças culturais, educativas e sociais para seu enfrentamento e um reconhecimento das dimensões de raça/etnia, de geração e de classe na exacerbação do fenômeno. (BRASIL, 2008, p. 7).

Sabe-se, por exemplo, que a violência contra a mulher acontece predominantemente em ambiente privado, enquanto a violência contra o homem é mais pública. Para além das implicações para o cuidado, este dado sugere que a violência contra a mulher pode ser bem menos notória, subestimada e subnotificada. Sem dúvida, esta menor visibilidade tem impacto no modo como a sociedade constrói seus discursos acerca da dimensão do problema da violência contra a mulher. Neste sentido, a articulação entre pesquisadores, militantes e representantes do poder público foi fundamental na construção de um conjunto de ações que se destinam a enfrentar ativamente a questão.

Dentre estas ações, pode-se citar:

Embora o cuidado à mulher vítima de agressão envolva diferentes setores e serviços, os serviços de saúde, sobretudo os emergenciais, são considerados o principal recurso das mulheres vítimas de violência.

Mesmo em casos de violência sexual, as mulheres tendem a procurar os serviços de saúde antes das delegacias, o que indica tanto a prioridade que elas dão aos cuidados de saúde (em relação às medidas legais) quanto a importância destes serviços no que diz respeito ao acolhimento inicial, à notificação e ao amparo nos desdobramentos (OSHIKATA et al., 2005).

Contudo, alguns profissionais de saúde tendem a entender a violência doméstica e sexual como um problema a ser abordado pela segurança pública e pela justiça (D’OLIVEIRA; SCHRAIBER, 1999).

As agressões contra a mulher podem assumir as formas de violência física, sexual ou psicológica, que podem ser combinadas. Segundo a Convenção de Belém do Pará, entende-se como violência contra mulher “[...] qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” (BRASIL, 1994, p. 2).

O cuidado à saúde da mulher vítima de violência deve ser entendido como um importante componente dentro de uma ampla rede de serviços.

Neste sentido, os profissionais de saúde devem conhecer os recursos desta rede que estão disponíveis em seus locais de atuação, e trabalhar de forma articulada, com capacidade para informar o usuário sobre estes serviços e recorrer a eles sempre que necessário.

Tais serviços incluem: o centro de referência (O centro de referência é responsável pelo acolhimento, pela informação e pela articulação entre os serviços), as casas-abrigo, as delegacias especializadas de atendimento à mulher, a defensoria da mulher, o juizado de violência doméstica e familiar, a central de atendimento à mulher (A central de atendimento à mulher é um serviço telefônico 24h que presta informações por meio do número 180), as ouvidorias, os centros de referência em assistência social (CRAS), os centros de educação e reabilitação do agressor, as polícias civil e militar, o instituto médico legal e outros serviços de atenção à saúde.

Toda a mulher vítima de violência sexual tem o direito de receber em até 72 horas procedimentos e medicamentos de anticoncepção de emergência, antibioticoterapia para DSTs e quimioprofilaxia antirretroviral. O profissional de saúde tem o dever de informar a vítima quanto ao seu direito de interromper uma gravidez resultante do abuso sexual (CAMPOS et al., 2005).

3. Violência contra a criança e o adolescente

O número de crianças vítimas de abuso e de negligência no Brasil é estimado em 4,5 milhões por ano, segundo a Associação Brasileira de Crianças Abusadas e Negligenciadas (DESLANDES, 1994). A violência contra criança pode assumir as formas de abuso físico, sexual, emocional e negligência.

A negligência é entendida como “[...] toda ação ou omissão por parte do adulto cuidador que resulte em dano ao desenvolvimento físico, emocional, intelectual e social da criança” (WOISKI; ROCHA, 2010, p. 144). A negligência é mais comum do que o abuso físico e tende a ser identificada por lesões no corpo da criança devido a acidentes, bem como pelo comprometimento da nutrição, da educação e da saúde geral da criança.

Cerca de 30 a 70% das crianças que são atendidas em emergências devido às consequências de maus-tratos estão sujeitas a sofrerem novos agravos (GONDIM et al., 2011). Sendo assim, o papel do profissional de saúde é fundamental, na medida em que pode identificar a violência e oferecer cuidado, orientação e tomar as medidas necessárias para a proteção da criança.

Avaliação Diagnóstica

A violência é um problema multifacetado, e é na relação e na percepção da pessoa violentada ‒ aspectos psicológicos, físicos, sociais, ambientais, entre outros ‒ que ela é validada. Portanto, com base em Dahlberg e Krug (2007), é necessário avaliar uma série de níveis como:

Diagnóstico Diferencial

Dentre as manifestações de agressão e autoagressão, no campo das classificações diagnósticas, de acordo com a OMS (1998, p. 64), encontram-se os Transtornos de Conduta, que incluem comportamentos disrruptivos nos quais a pessoa não consegue controlar seus impulsos e manifesta energia em atos e discursos. Dentre os padrões diagnósticos estão brigas, furtos, provocações, ameaças, vandalismo e mentiras

Abordagem Inicial

O acolhimento e o diálogo sobre o que está acontecendo são o primeiro passo para compreender o sofrimento que a pessoa vivencia, tanto no caso de vítimas de agressão quanto em casos de autoagressão.

A disciplina como objetivo de minimizar o sintoma pode ser um mecanismo de normatização, entretanto, deve ser amplamente discutida entre o profissional, a equipe e a família. A equipe deve evitar juízos de valor quando refletir a disciplina como medida de condicionamento do comportamento, pois pode tomar esta atitude como punição.

Dentre as indicações estão: saber sobre os motivos que levam a comportamentos transgressores; incentivar a família a refletir sobre a dinâmica do conflito; a disciplina deve ser pensada e discutida entre a equipe, o usuário e a família, principalmente quando a pessoa tem dificuldade de estabelecer limites próprios.

Neste sentido, gostaríamos de iniciar este tópico apresentando dois recursos relacionais que podem servir como organizadores no trabalho do profissional de saúde.

Escuta respeitosa

Refere-se à capacidade do profissional de saúde ouvir a pessoa que procura cuidado, suspendendo tanto o direcionamento técnico que busca informações específicas quanto seus preconceitos e juízos.

Em geral, o trabalho em saúde demanda dos profissionais um nível de eficiência e rapidez que compromete sua capacidade de escutar atentamente ao usuário. Suas interrogações são, com frequência, dirigidas, e buscam uma resposta clara e objetiva. Além disso, tende-se a completar aquilo que a pessoa está dizendo com suposições apressadas.

Assim, a escuta respeitosa é aquela que permite ao profissional manter-se em um estado de desconhecimento, evitando compreender a narrativa do usuário a partir de suas próprias referências.

Por exemplo, ao abordar uma pessoa que se auto agrediu, existe uma tendência de que foquemos nos aspectos biológicos e fisiológicos do ato. No entanto, os motivos (factuais ou imaginários) que possam ter levado a essa ação não podem ser descartados no ato clínico. É fundamental que o profissional ao abordar a pessoa entenda com as concepções que ela própria atribui ao ato e as implicações/causas do mesmo. Perguntas como “O que te levou a se machucar?” podem ser a abertura para o entendimento do universo complexo que permeia a ação, auxiliando tanto no vínculo, como também na tomada de resoluções conjuntas entre profissional e a pessoa atendida.

Fala cuidadosa

Refere-se à atenção que o profissional emprega em sua comunicação com o usuário. O profissional de saúde ocupa, na relação com o usuário, um lugar hierarquicamente privilegiado.

Nesta situação, sua fala representa mais que a voz de um profissional específico; ela carrega um conjunto de representações acerca da instituição de saúde e do poder que nela se institui. Neste sentido, o profissional de saúde deve considerar aquilo que ele diz emerge de um lugar específico e, por isso, é revestido de uma força singular.

Se considerarmos a fragilidade das pessoas sobre as quais falamos neste módulo, facilmente perceberemos a importância de o profissional de saúde ponderar o efeito de suas palavras.

Essa ponderação deve considerar que toda comunicação tem, para além de seu conteúdo, uma função. Trata-se, portanto, de considerar o que se diz, como se diz e para que se diz. Mensagens importantes podem ter sua utilidade arruinada por uma formulação indelicada. Do mesmo modo, mensagens irrelevantes do ponto de vista do conteúdo podem ter uma função importante na construção de um vínculo de apoio e segurança com o usuário.

1. Autoagressão e suicídio

Os dados que apresentamos até agora contribuem para o delineamento de um perfil que nos ajuda a identificar pessoas em risco de suicídio. Além de estar atento às características anteriormente mencionadas (Para relembrar essas características, leia novamente, na parte de Classificação de Autoagressão e suicídio), o profissional de saúde deve levar em consideração os comportamentos e as comunicações do usuário que indicam a possibilidade de suicídio. Frases como: eu não aguento mais, eu queria estar morto ou eu sou um transtorno na vida das outras pessoas são consideradas comunicações de alerta.

Em geral, tais expressões são acompanhadas de um estado afetivo de desesperança, tristeza e desespero. Quanto mais intensos e prolongados se apresentarem esses estados afetivos na história de vida do paciente, maior é o risco de que ele cometa suicídio.

Para tratar desse tema, evidentemente, é necessário que o profissional de saúde tenha sensibilidade e saiba esperar pelo momento oportuno para inquirir o usuário. Ele deve, por exemplo, paulatinamente, ir avançando na conversa em direção ao tema, acompanhando com atenção as reações da pessoa e reassegurando, sempre que necessário, o seu interesse em ajudá-la.

As intervenções do profissional de saúde serão orientadas pela sua compreensão do nível de risco do usuário. Neste sentido, o Ministério da Saúde publicou o manual intitulado Prevenção do Suicídio (BRASIL, 2006), que classifica os níveis de risco da seguinte maneira, veja a baixo:

O quadro a seguir apresenta uma síntese das ações sugeridas pelo manual para cada um dos níveis de risco. Observe:

Ações sugeridas para os níveis de risco de suicídio

Risco

Ações

Baixo

Oferecer apoio emocional.

Conversar com a pessoa sobre seus desejos de morte.

Prestar apoio enfatizando e valorizando seus recursos, sobretudo aqueles que já se mostraram efetivos em situações estressoras passadas.

Encaminhar o usuário para um profissional de saúde mental.

Médio

Oferecer apoio emocional.

Conversar com a pessoa sobre seus desejos de morte.

Prestar apoio enfatizando e valorizando seus recursos, sobretudo aqueles que já se mostraram efetivos em situações estressoras passadas.

Focalizar os sentimentos de ambivalência da pessoa e explorar suas possíveis dúvidas quanto à decisão de cometer suicídio.

Estimulá-la a explorar alternativas ao suicídio, ainda que estas alternativas não sejam ideais.

Negociar e fazer um contrato no qual a pessoa se comprometa a não cometer suicídio por um determinado período de tempo sem comunicar a equipe de saúde.

Encaminhá-la para atendimento psiquiátrico.

Com a autorização da pessoa, contatar a família e buscar sua rede de apoio.

Orientar a família sobre as formas de prevenir o suicídio e sobre a necessidade de vigiar a pessoa em risco.

Alto

Não deixar a pessoa sozinha.

Remover do seu alcance quaisquer instrumentos que possam ser utilizados para cometer suicídio (facas, pílulas, cordas, armas, venenos).

Negociar e fazer um contrato no qual a pessoa se comprometa a não cometer suicídio por um determinado período de tempo sem comunicar a equipe de saúde.

Orientar a família sobre as formas de prevenir o suicídio e sobre a necessidade de vigiar a pessoa em risco.

Encaminhá-la para um serviço de emergência psiquiátrica.

Caso a pessoa recuse veementemente a indicação de internação, será necessário contatar a família para auxiliar em uma internação involuntária.




Quadro: Ações sugeridas para os níveis de risco de suicídio.
Fonte: Adaptado de Brasil (2006).

2. Violência contra a mulher

As mulheres que sofreram agressões necessitam de cuidados integrados em saúde. Por ter sido agredida, a vítima possivelmente já se sente diminuída como ser humano e, portanto, necessitará de especial atenção dos profissionais de saúde.

O respeito, a atenção e a humanidade preconizados para qualquer atendimento em saúde têm papel fundamental no caso da mulher vítima de violência. Por isso, o profissional deverá exercitar sua capacidade de empatia, de escuta e de suspensão de preconceitos.

É importante que todo o procedimento seja informado à vítima e que ela autorize sua execução. Do ponto de vista psicológico, é a postura cuidadosa do profissional de saúde que assegurará à mulher que seu corpo não será novamente maltratado, invadido ou tratado como objeto. Neste sentido, todos os profissionais de saúde são responsáveis pelo cuidado com o estado psicológico da vítima, ao mesmo tempo em que tentarão garantir o acompanhamento de um psicólogo o mais rapidamente possível.

Nesses casos, os profissionais de saúde devem preencher a Ficha de Notificação e Investigação de Violência Doméstica, Sexual e/ou outras Violências (no caso de violência contra crianças e adolescentes, deve-se comunicar, também, o Conselho Tutelar.), conforme estabelecido na Lei n. 10.778 de 2003.

Ações Registro de Encaminhamento

História da violência

Registrar em prontuário:

1) local, dia e hora aproximada da violência sexual.

2) tipo(s) de violência sexual sofrido(s).

3) forma(s) de constrangimento utilizada(s).

4) tipificação e número de autores da violência.

5) órgão que realizou o encaminhamento.

Providências instituídas

Verificar eventuais medidas prévias:

1) atendimento de emergência em outro serviço de saúde e medidas realizadas.

2) realização do Boletim de Ocorrência Policial.

3) realização do exame pericial de Corpo de Delito e Conjunção Carnal.

4) comunicação ao Conselho Tutelar ou a Vara da Infância e da Juventude (para crianças e adolescentes).

5) outras medidas legais cabíveis.

Acesso à rede de atenção

Verificar o acesso e a necessidade da mulher às diferentes possibilidades de apoio familiar e social, incluindo-se a questão de abrigos de proteção.




Quadro 2: Registro de encaminhamento.
Fonte: Brasil (2012, p. 22).

A seguir, apresentamos um diagrama que indica as possibilidades para apoio e encaminhamento dos casos, que devem ser levados em conta pelos profissionais que atendem mulheres vítimas de violência.

3. Violência contra a criança e o adolescente

Devido às punições previstas em leis e à reprovação social, é muito raro que os responsáveis pela criança falem abertamente sobre situações de abuso. Neste sentido, de acordo com Gondim, Muñoz e Petry (2011,p.528), os profissionais de saúde devem estar atentos a algumas características da situação atendida que indicam a possibilidade de abuso, tais como:

1) as explicações sobre a injúria são vagas ou ausentes; 2) as versões sobre os fatos diferem de um momento para outro; 3) o(s) perpetrador(es) da injúria tarda(m) pelo menos duas horas para buscar auxílio médico ou recorre(m) aos serviços de urgência sem motivo ou por motivos insignificantes; 4) histórico de visitas frequentes à emergência; 5) fraturas repetidas; 6) história relatada inconsistente com os achados físicos.

Sabe-se que 90% das crianças que sofreram abuso físico apresentam lesões de pele. Deste modo, reconhecer as características dessas lesões, sua frequência de distribuição no corpo e saber diferenciá-las de outros tipos de lesões dermatológicas são recursos importantes para a identificação da violência contra a criança.

Os sinais cutâneos mais comuns são equimoses, lacerações, abrasões, queimaduras, mordeduras, alopecia traumática e traumas orais (GONDIM; MUÑOZ; PETRI, 2011).

Na relação com a criança, os profissionais de saúde devem buscar estabelecer um clima de afinidade e confiança, transmitindo segurança e evitando qualquer insinuação de julgamento. Neste sentido, é importante familiarizar a criança com o ambiente hospitalar e explicar a ela todos os procedimentos que serão realizados, informando o tempo, a possibilidade de dor e os objetivos (WOISKI; ROCHA, 2010). Vale lembrar que uma criança que sofreu abuso constantemente buscará checar se o adulto que se propõe a cuidar dela é, de fato, alguém confiável.

Atendimento Sequencial

Chiaverini et al. (2011, p. 175), com base nos documentos da Organização Mundial da Saúde e do Ministério da Saúde, apontam como diretrizes para as ações profissionais:

a) incentivar a adoção de comportamentos e ambientes seguros e saudáveis, mobilizando a sociedade por meio da mídia, dos setores de educação e outras estratégias intersetoriais; b) monitorar os eventos violentos, pela vigilância epidemiológica e dos sistemas de informação; c) ampliar e qualificar o atendimento pré-hospitalar; d) prestar assistência interdisciplinar e intersetorial às vítimas, articulando o setor saúde com as áreas jurídicas e de segurança; e) capacitar os profissionais para o atendimento precoce e eficaz às vítimas, prevenindo agravos como o transtorno de estresse pós-traumático, que tem elevada prevalência nas populações expostas a fenômenos individuais ou coletivos de violência; f) apoiar o desenvolvimento de estudos sobre violência.

Indicação de encaminhamento e monitoramento

Todas as indicações de encaminhamentos seguem a lógica da corresponsabilização. Ou seja, a equipe profissional deve contribuir para que haja o estabelecimento do vínculo da pessoa no serviço de saúde indicado e deve realizar o acompanhamento do seu estado de saúde.

Para Chiaverini et al. (2011, p. 175-76), o encaminhamento deve ser planejado na perspectiva do que o território de abrangência oferece para que a pessoa possa elaborar seu processo de adoecimento e vitimização.

1. Acolher e escutar, permitindo que a questão da violência na vida das pessoas possa ser trazida para as consultas e conversas; abrindo espaços para falar das dores, tristezas e angústias, de eventos passados, inseguranças presentes, temores futuros. 2. Criar espaços e práticas promotoras de bons tratos e de cuidado. Isso significa utilizar-se do apoio intersetorial e interinstitucional, em que as pessoas se sintam bem, desenvolvendo atividades criativas, prazerosas e produtivas; em especial destacam-se os grupos de convivências de mulheres e idosos, envolvendo atividades de autocuidado e geração de renda, que vão desde trabalhos manuais, exercício físico, jardinagem, teatro até outras atividades semelhantes. 3. Incentivar a organização de espaços comunitários de desenvolvimento e proteção para as crianças e adolescentes: esportes, música, creches, grupos, bibliotecas, brinquedotecas, por exemplo.

O monitoramento é realizado em rede cujo foco parte de Centros de Referência à Violência.

Cuidados pós evento agudo no domicilio e na comunidade

Após eventos de violência, agressão e autoagressão, restam sentimentos, emoções e imagens mentais que incomodam a pessoa. A abordagem dos resquícios psíquicos de quem vivencia esse sofrimento específico pode ser feita de diversas maneiras.

Para Chiaverini et al. (2011, p.176), pode-se realizar as seguintes intervenções no período que sucede a esses eventos:

Destacamos que todas as formas de intervenção devem ser avaliadas constantemente, incluindo a pessoa e a família como membros permanentes desta avaliação.

Fechamento

Caro aluno!

A violência, a agressão e a autoagressão são fenômenos refletidos na perspectiva de condições humanas. A patologização desses fenômenos fica evidente quando são promovidas rupturas sociais e quando determinados critérios técnicos são estabelecidos para interpretá-los. O acolhimento, o vínculo, a responsabilidade e a atuação em Rede Intersetorial são premissas para o cuidado nesta especificidade.

Tenha uma boa avaliação.


Murilo Moscheta

Referências

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Autor

Murilo dos Santos Moscheta

Graduação, mestrado e doutorado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo. Realizou estágio doutoramento na Universidade de New Hampshire e atuou como professor convidado do East Side Institute de Nova York. Professor adjunto A do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual de Maringá-PR.

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