Práticas éticas e legais no enfrentamento da morte
Aplicações éticas e legais sobre situações que envolvem a morte
Chegando a este ponto da sua leitura, você deve estar se perguntando por que abordamos todos os temas anteriores, não é? A seguir, apresentaremos alguns casos para discussão que relacionam o tema do curso com situações cotidianas que exigem conhecimento das causas descritas anteriormente:
Pausa para o debate |
Maria Antônia (22 anos) solicitou à recepcionista da unidade de saúde para conversar com a enfermeira no dia do Planejamento Familiar. Ela quer ajuda, pois relata que teve relacionamento casual, recentemente, com um desconhecido e que durante o ato sexual não utilizou nenhum método contraceptivo. Agora, descobriu que está grávida, mas não deseja levar a gravidez a termo, pois se sente muito jovem para ser mãe. Ela afirma que não tem condições financeiras para sustentar uma criança e expressa o desejo de fazer um aborto. Alega que é dona do seu próprio corpo e que tem o direito de abortar um feto não desejado.
Joana está grávida e, recentemente, procurou a Unidade de Saúde da Família (USF) para fazer acompanhamento durante o pré-natal. Ela encontra-se com 19 semanas e cinco dias de gestação. Foi solicitada uma ultrassonografia abdominal, e, durante o exame, foi observado que seu bebê era anencéfalo (cérebro de formação incompleta, sem chances de sobrevivência após o parto ou dias/semanas). Dias depois Joana retornou à USF disposta a fazer o aborto, e solicitou ajuda dos profissionais de saúde. E agora? Que condutas podemos adotar diante desses casos? Aborto é um tema polêmico, mas temos que estar preparados, enquanto profissionais de saúde, para atuarmos nessas situações. Que tal compartilhar no fórum se você já precisou tratar alguma situação semelhante? O que você fez? Que orientações forneceu? E se você ainda não passou por isso, como acha deve ser a conduta do profissional da Atenção Básica? Para acessar o fórum, clique aqui. |
Aborto
Essas são situações em que "ações de morte" estão envolvidas e com as quais as equipes da Atenção Básica podem se deparar em sua rotina, sendo necessárias noções de biodireito.
São considerados crimes contra a vida (ABREU FILHO, 2010):
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homicídio: quando o objetivo da conduta é matar alguém;
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aborto:
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autoaborto: quando a própria gestante pratica a conduta. A pena de reclusão prevista para a gestante é de 1 a 3 anos;
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aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante: pena de 3 a 10 anos de reclusão para terceiros;
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aborto realizado por terceiros com o consentimento da gestante: pena de reclusão de 1 a 4 anos prevista para a gestante.
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Sobre a questão do aborto, é importante saber que, no direito brasileiro e na codificação ética vigente, o aborto é crime contra a vida, tipificado no Código Penal Brasileiro, no Decreto 2.848, artigos 124 a 126, exceto nos casos que se deseja salvar a vida da gestante ou evitar o nascimento de uma criança gerada por meio de estupro ou em casos de anencefalia; nos quais o procedimento deve ser realizado por médico em hospitais de referência para Sistema Único de Saúde (SUS), com base em protocolos médicos institucionalizados (BRASIL, 1940).
O Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54, autorizou a interrupção de gestação com feto anencéfalo por entender que o feto sem cérebro, mesmo que biologicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica e, principalmente, de proteção jurídico-penal. "Nesse contexto, a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica" (BRASIL, 2012c).
Saiba mais |
Para aprofundar seus conhecimentos sobre esses assuntos, recomendamos a leitura da súmula do Supremo Tribunal Federal nº 54 ADPF sobre aborto em feto anencéfalo. Para acessá-la, clique aqui (BRASIL, 2012c). Para saber mais os aspectos ético-profissionais e jurídicos que incidem sobre a anencefalia, acesse o caderno "Atenção às mulheres com gestação de anencéfalos - 2014" (BRASIL, 2014). Para acessá-lo, clique aqui. |
Segundo França (2015), na sentença de permissão para a interrupção de gravidez por anencefalia há o seguinte registro: “não se está admitido à indicação eugênica do aborto com o propósito de melhorar a raça humana ou evitar que o ser em gestação venha a nascer logo, aleijado ou mentalmente débil. Busca-se evitar o nascimento de um feto cientificamente sem vida, inteiramente desprovido de cérebro e incapaz de existir por si só” (Alvará emitido pela Comarca de Londrina, Segunda Vara Criminal. Diagnóstico: Anencefalia, em 1º de dezembro de 1992).
Eutanásia e ortotanásia
Vamos conhecer, agora, outro tema polêmico que envolve situações de morte e bioética:
Pausa para o debate |
Marcela (38 anos) tinha diagnóstico de tumor de pulmão há 11 meses e estava em tratamento quimioterápico sem resposta efetiva. Mais recentemente, tinha descoberto metástases em cérebro, coluna cervical e torácica. Ela queixava-se de muita dor no pescoço e nas costas. Referia tosse paroxística e dificuldade de respirar, com piora nos últimos 20 dias. Estava em uso de analgésico à base de sulfato de morfina a cada 4 horas, por via oral. O esposo dela vinha acompanhando todo o tratamento em busca de sua cura, embora, nas últimas consultas, tivesse relatado que não estava aguentando ver quem tanto amava naquele sofrimento. Esses comentários persistiram, mesmo ele e toda a família fazendo acompanhamento psicológico. Certo dia, os profissionais de saúde que acompanhavam Marcela no Serviço de Atenção Domiciliar foram chamados à sua residência, pela manhã, porque a paciente havia ido a óbito. Marcela havia pedido ao esposo uma overdose da medicação que ela estava tomando, com o objetivo de acabar com aquele sofrimento. Durante a visita, a equipe de Atenção Domiciliar encontrou a caixa do referido medicamento vazia. Marcela teria ingerido 30 comprimidos, aproximadamente. O marido negou ter sido ele o culpado, apesar de as evidências encontradas sugerirem o contrário. Na sua opinião, como o profissional da Atenção Básica deve orientar um paciente que deseja a eutanásia para aliviar um sofrimento? Quais são as situações (doenças/agravos) mais comuns e quem podem estar associadas a pensamento eutanásico no paciente? Você já presenciou alguma situação semelhante? Como reagiu? Clique aqui para cessar o fórum e compartilhar seus conhecimentos com os colegas. |
No direito brasileiro e na codificação ética vigente, o suicídio é crime contra a vida, tipificado no código penal brasileiro, no Art. 122 “Induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”: com pena de reclusão de 2 a 6 anos, se o suicídio se consuma; ou reclusão de 1 a 3 anos, se da tentativa de suicídio resulta lesão corporal de natureza grave (ABREU FILHO, 2010).
O caso acima se configura como um suicídio assistido porque houve o auxílio de terceiro para a vítima tirar a própria vida, fornecendo os meios materiais (comprimidos). É possível, excepcionalmente, que a conduta se enquadre na indução (criar na mente da vítima o desejo de matar-se) ou na instigação (reforçar a ideia preexistente de suicídio).
Para se diferenciar corretamente o crime de homicídio eutanásico do crime de suicídio assistido, é importante verificar quem praticou a conduta pertencente à execução do crime, uma vez que a motivação para a prática do crime seja a mesma (compaixão). O suicídio se diferencia do homicídio, porque, no primeiro, o agente ajuda a vítima a se matar (art. 122 do Código Penal Brasileiro), já no homicídio, o agente mata a pessoa, mesmo a pedido da própria vítima (art. 121). A participação ao suicídio se dá com a consciência da vítima, ela precisa querer o resultado (ABREU FILHO, 2010; BRASIL, 1940; LOPES ; LIMA; SANTORO, 2014).
O termo eutanásia é oriundo do grego (eu = boa, thánatos = morte). A eutanásia deve ser entendida como o ato de ceifar-se a vida de outra pessoa acometida por uma doença incurável, que lhe causa insuportáveis dores e sofrimentos, por piedade e em seu interesse. O que motiva o autor da eutanásia é a compaixão para com o próximo, isto é, busca-se fazer um “bem” àquele doente, fator diferenciador de um homicídio simples (matar alguém), no qual está ausente a compaixão. Esse último deixa de ser eutanásia e passa a ser classificado como homicídio (LOPES; LIMA; SANTORO, 2014).
Atualmente, o conceito mais prevalente de eutanásia relaciona-se à expressão da antecipação da morte do paciente, incurável, igualmente terminal e em grande sofrimento; ação movida por compaixão.
A eutanásia pode ser classificada quanto (VILLA BÔAS, 2008; LOPES; LIMA; SANTORO, 2014):
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ao modo de atuação do agente:
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eutanásia ativa: quando o autor dá início ao evento da morte por meio de uma ação comissiva com o desejo de encurtar a vida do paciente;
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eutanásia passiva: quando o resultado é obtido por uma ação de omissão;
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à intenção que anima a conduta do agente:
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eutanásia direta;
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eutanásia indireta;
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à vontade do paciente:
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voluntária;
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involuntária;
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à finalidade:
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libertadora;
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eliminadora;
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econômica.
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A eutanásia passiva difere da ortotanásia porque, nesta última, a causa do evento de morte já se iniciou, e, por isso, a morte é inevitável e iminente, enquanto que, na eutanásia passiva, a omissão é a causadora do resultado morte.
Na eutanásia passiva, omitem-se ou suspendem-se procedimentos indicados e proporcionais que podem beneficiar o paciente, tais como cuidados paliativos. Já na ortotanásia, suspendem-se os procedimentos considerados extraordinários e desproporcionais diante da inevitável e iminente morte, procedimentos estes que só serviriam para prolongar artificialmente a vida sem melhorar a existência em seu processo final (distanásia) (VILLA BÔAS, 2008; LOPES; LIMA; SANTORO, 2014).
É importante registrar que, na doutrina jurídica brasileira, a eutanásia configura-se como crime contra a vida e pode ser tipificada como homicídio ou suicídio assistido, enquanto que a ortotanásia é um procedimento lícito (ABREU FILHO, 2010; LOPES ; LIMA; SANTORO, 2014).
O termo ortotanásia vem do grego (othos = reto, correto e thanatos = morte). A morte ocorrerá em seu tempo correto, nem antes nem depois. Não existe encurtamento do período vital, uma vez que o paciente já se encontra em inevitável esgotamento. Também não existe nenhum interesse em reverter o quadro terminal, o que resultaria em prolongar o processo de sofrer e morrer para o paciente e sua família. Nesses casos, mantêm-se os cuidados básicos (medidas de paliação, higiene, alimentação e hidratação).
Esse tipo de procedimento vêm sendo discutido, como apontam os seguintes documentos:
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Resolução nº 1.805/2006 do Conselho Federal de Medicina (BRASIL, 2006a), clique aqui para acessar;
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Resolução nº 1.995/2012 do Conselho Federal de Medicina (BRASIL, 2012b), clique aqui para acessar;
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Manual "Humanização da Morte nas Práticas de Saúde" (MELLO, 2008), clique aqui para acessar;
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Manual de “Cuidados Paliativos", da Academia Nacional de Cuidados Paliativos (CARVALHO; PARSONS, 2012), clique aqui para acessar;
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Manual de “Cuidados Paliativos Oncológicos: Controle dos Sintomas" (BRASIL, 2001), clique aqui para acessar.
Saiba mais |
Para saber mais sobre ortotanásia, leia o artigo "Ortotanásia, sofrimento e dignidade", dos autores Rachel Menezes e Miriam Ventura (MENEZES; VENTURA, 2013). Para ter acesso, clique aqui. |
Pausa para o debate |
Será que o prolongamento da vida estará sempre associado à qualidade de vida? Quanto tempo e quantos recursos devem ser utilizados para se manter uma vida? Como fica o conceito de saúde holística em casos como o da imagem abaixo? Vamos até o fórum discutir o assunto? Clique aqui para compartilhar suas reflexões. |