Normatizações e resoluções aplicadas à Medicina de Urgência e Emergência no Brasil

Na história da saúde pública do Brasil, as Urgências e Emergências foram uma das mais recentes discussões e incorporações de normatizações federais. No Brasil, na década de 70, os trabalhadores, gestores e usuários iniciaram uma crítica severa ao modelo hegemônico no sistema de saúde, sendo apontada a necessidade de uma reforma para a construção de um novo e mais efetivo modelo de atenção.

Iniciou-se o movimento pela Reforma Sanitária, que começa a mostrar uma realidade assistencial num modelo distorcido, principalmente na área das urgências e emergências, que não dava conta de atender às necessidades e realidades epidemiológicas de um país continental e tão diverso.

A partir dos anos 80, o movimento sanitário começa a apresentar a necessidade de se repensar e reconstruir o modelo de atenção em novas bases, ou seja, entendendo a saúde não como mera ausência de doenças ou simples reparação do corpo biológico, mas tentando ampliar o conceito da saúde como direito social e de cidadania, além de como resultante das condições de alimentação, moradia, saneamento e meio ambiente, educação, trabalho e renda, lazer e cultura, entre outras.

Para dar conta da complexidade do objeto do processo saúde/doença, há que se ter um conceito amplo de saúde que direcione a intervenção e resposta às necessidades de saúde dos sujeitos sociais, atuando não somente na promoção e prevenção, passando pelo diagnóstico, monitoramento e tratamento, mas também sobre a reabilitação em todos os seus aspectos.

Contudo, encontravam-se áreas físicas e apoio diagnóstico inadequados para a demanda que chegava à porta de entrada das urgências, isso somado à insuficiência de leitos de UTI, fazendo com que, em quase todas as unidades, fosse necessário “improvisar” leitos de UTI, ficando, muitas vezes, os casos graves aguardando nos corredores. Outro fator importante é que os casos eram atendidos por ordem de chegada, e os de maior gravidade podiam estar aguardando numa “fila de espera”, enquanto os de menor gravidade estavam sendo atendidos.

Soma-se a isso a insuficiente qualificação profissional na área específica das urgências, levando profissionais da área da saúde, em geral, a saírem do processo de formação sem a qualificação técnica necessária para a resolutividade dos casos, bem como a incipiência da rede, especialmente a básica, para o acolhimento adequado aos casos agudos, fazendo com que a demanda fosse sempre drenada para as portas de urgência. Além do mais, a ausência de centrais de regulação médica fazia com que os transportes de pacientes fossem feitos de maneira aleatória, gerando uma busca por um local que “abrisse as portas” para receber o paciente.

Esse cenário levou vários trabalhadores dessa área a se reunirem e começarem a discutir como deveria ser um atendimento humanizado e acolhedor, com maior resolubilidade, respeitando as realidades epidemiológicas e as diferentes necessidades da população.

Com conhecimento técnico e com experiências internacionais, o grupo levou até o Ministério da Saúde uma proposta que foi aprovada nos espaços de gestão e governo, sendo publicada a primeira Portaria que legislava e normatizava as urgências, propondo uma Política a ser implantada, e não um programa (CARTA..., 1986).

Em 05 novembro de 2002, foi publicada a Portaria GM/MS nº 2.048, que constitui o “Regulamento Técnico dos Sistemas Estaduais de Urgência e Emergência” (BRASIL, 2002). Ela é composta de sete capítulos que detalham o passo a passo para todos os gestores e profissionais de saúde, por isso é chamada de Regulamento Técnico. Veja, a seguir, os resumos dos capítulos do regulamento:


Resumo dos capítulos da Portaria GM/MS nº 2.048

Capítulo I
Refere-se ao Plano de Atendimento às Urgências. Descreve as informações de como construir um “Plano” já com o modelo “regional”, colocando o Estado como ator importante à frente do processo.
Capítulo II
Refere-se à regulação médica das urgências com a normatização, regras, modelo de funcionamento, profissionais envolvidos com seus perfis, competências e responsabilidades, equipamentos necessários e área física.
Capítulo III, IV e V

Apresentam o embrião dos componentes da Rede de Atenção às Urgências e Emergências:

- Pré-hospitalar fixo (equipamentos não hospitalares que estão antes do hospital, área física, equipe com perfil, competências e responsabilidades).

- Pré-hospitalar móvel, conhecido com vários nomes pelo Brasil, como Resgate, Sistema Integrado de Atendimento ao Trauma e Emergências - SIATE, SAMU, Grupamento de Socorro de Emergência - GSE, entre outros, sendo a maioria em trabalho conjunto com a Saúde e o Corpo de Bombeiros. O capítulo V, mais difícil e polêmico, descreve como devem ser os hospitais, área física, equipe com perfil, competências e responsabilidades.

Capítulo VI
Refere-se às transferências inter-hospitalares. Normatiza as responsabilidades na transferência de um paciente entre unidades de saúde, descrevendo as responsabilidades do solicitante, do médico regulador, equipe do transporte terrestre/aéreo/aquático e do receptor do paciente.
Capítulo VII
Menciona a necessidade de se criar os Núcleos de Educação em Urgências com a grade necessária, temas, carga horária para cada profissional. Refere que os Núcleos devem ser construídos em parceria com vários atores, para atuarem na qualificação e educação permanente dos profissionais de saúde e também da população.

Fonte: (BRASIL, 2002, adaptado).


Em 2003, foram publicadas as Portarias nº 1.863 e 1.864, já revogadas, mas que tiveram o papel importante de implantar a “Política Nacional de Atenção às Urgências e Emergências” (BRASIL, 2003a, 2003b).

A Portaria nº 1.863 institui a Política Nacional, apresentando a normatização dos cinco eixos, dentro de sete diretrizes dos componentes, com suas responsabilidades e níveis de atuação. Os cinco eixos definem o caminho que as urgências devem seguir, como ferramentas gestoras para interferir no processo assistencial (BRASIL, 2003b):

Os 5 eixos no processo assistencial: o caminho das urgências

Fonte: (Os autores, 2016).

As sete diretrizes norteadoras reforçam a função da Política como indutora de modificações e adequações regionais (BRASIL, 2003b). São elas:

  1. Garantir a universalidade, equidade e integralidade no atendimento às urgências clínicas, cirúrgicas, gineco-obstétricas, psiquiátricas, pediátricas e as relacionadas às causas externas (acidentes e violências).
  2. Consubstanciar as diretrizes de regionalização da assistência às urgências mediante a adequação criteriosa da distribuição dos recursos, conferindo concretude ao dimensionamento e implantação de Sistemas Estaduais, Regionais e Municipais e suas respectivas redes de atendimento.
  3. Adotar estratégias promocionais que garantam a prevenção das doenças e agravos, proteção da vida e recuperação da saúde, assegurando a humanização do atendimento às urgências.
  4. Fomentar, coordenar e executar programas e projetos estratégicos de atendimento às necessidades coletivas, urgentes e transitórias, decorrentes de situações de perigo iminente, de calamidades públicas e de acidentes com múltiplas vítimas, a partir da construção de mapas de riscos regionais e locais.
  5. Contribuir para o desenvolvimento de processos e métodos de coleta, análise e organização dos resultados das ações e serviços de urgência, permitindo que, a partir de seu desempenho, seja possível uma visão dinâmica do estado de saúde da população e do desempenho do Sistema Único de Saúde.
  6. Integrar o complexo regulador do Sistema Único de Saúde e promover intercâmbio com outros subsistemas de informações intersetoriais, implementando e aperfeiçoando, permanentemente, a produção de dados e democratização das informações.
  7. Qualificar a assistência e promover a educação permanente das equipes de saúde do Sistema Único de Saúde na Atenção às Urgências, de acordo com os princípios da integralidade e humanização.

A terminologia anterior dos componentes foi mantida, mas foi acrescentado o Pós-hospitalar, um importante componente de cuidado, de acordo com a realidade epidemiológica, representada pelo aumento dos casos crônicos por mudança da esperança de vida, que aumentou muito a faixa etária (BRASIL, 2012a):

Componentes das redes locorregionais de atenção integral às urgências

FONTE: (BRASIL, 2012A, adaptado).

A descrição desses níveis colocou os profissionais das urgências num papel importante de intervir na formulação das políticas públicas, a partir do conhecimento da atuação direta com o paciente até o entendimento da realidade de necessidades da região de sua área de abrangência:

  1. Atuação direta com o paciente
  2. Atuação na cena da ocorrência
  3. Controle operacional
  4. Gerência de serviços
  5. Gestão do Sistema
  6. Formulação de políticas públicas

A Portaria nº 1.864 criou o componente móvel, batizando-o de SAMU 192, normatizando o seu funcionamento, profissionais envolvidos, competências e responsabilidades (BRASIL, 2003a).

Por definição e missão, o SAMU 192 é o atendimento que procura chegar, nos primeiros minutos após o agravo, ao cidadão acometido por uma urgência de natureza clínica, cirúrgica, traumática, obstétrica ou psiquiátrica, prestando atendimento adequado no local e transporte a um serviço de saúde hierarquizado e integrado ao SUS, quando necessário devendo cumprir os seguintes requisitos (BRASIL, 2003a):

  • Ser um serviço público de ajuda médica de urgência - 24 horas por dia;
  • Ter o acionamento fácil e gratuito pelo número nacional de urgências médicas: 192;
  • Assegurar a escuta médica qualificada permanente;
  • Garantir atendimento médico no local e retaguarda em serviços de saúde;
  • Responder a chamados de qualquer natureza, no menor tempo possível;
  • Viabilizar o transporte mais adequado para cada tipo de agravo ou solicitação;
  • Organizar o acolhimento do paciente no serviço receptor definido;
  • Participar e elaborar os Planos de atenção para atendimento a eventos e/ou grandes aglomerados;
  • Coordenar o atendimento de catástrofes ou acidente com múltiplas vítimas;
  • Participar da formação em urgência dos profissionais de saúde de sua área de abrangência;
  • Elaborar e aplicar curso de primeiros socorros para leigos;
  • Estar integrado com outros SAMU da região e com as outras centrais de regulação.

Ficam definidas como competências e responsabilidades para esse serviço a regulação médica do sistema de urgência, o monitoramento de toda a demanda, garantindo a orientação médica, e os atendimentos dos casos de urgência (BRASIL, 2003a). Além disso, deve prover os atendimentos sob agendamento prévio dos casos graves, a cobertura de eventos de risco, a cobertura de acidentes de grandes proporções, a capacitação de recursos humanos de sua área de abrangência e as ações educativas para a comunidade (BRASIL, 2003a).

Para discutir o outro componente, as Unidades Não Hospitalares, Pré-Hospitalar Fixo, Pronto Atendimento, Pronto Socorro Não Hospitalar, Unidades de Emergência, com vários nomes por esse país, um grupo, mais uma vez, debruçou-se sobre o tema e escreveu a Portaria das UPAs, que nada mais é que a definição de quais deveriam ser a área física, os equipamentos e a equipe necessária para atender, com qualidade, a um quantitativo/dia de pacientes, de maneira humanizada e com acolhimento, através da inserção num território, com a responsabilidade sanitária definida junto com os outros equipamentos, garantindo os níveis de atenção, desde a atenção primária até a alta complexidade.

Esses equipamentos são caros e não davam economia de escala nem de escopo. Assim, o gestor não conseguiria mantê-los, e isso forçou, mais uma vez, a discussão de “região”, pois não temos nenhum município autônomo nas urgências, porque todos vão receber algum paciente de outros municípios ou terão que encaminhar algum paciente. Nessa discussão, surgiu a portaria nº 2.657, que destacava os critérios para a regionalização das urgências (BRASIL, 2004a).

Última atualização: quarta, 21 Nov 2018, 16:34